Repatriação sem armadilhas – Artigo de Rodrigo Falk Fragoso e Luiz Gustavo Bichara no Valor Econômico
Rodrigo Falk Fragoso e Luiz Gustavo Bichara
Mario Quintana já observava que “o passado não reconhece o seu lugar. Quer sempre estar presente”. A reflexão se aplica perfeitamente ao cotidiano dos contribuintes brasileiros.
A Receita Federal anunciou recentemente que poderá exigir a comprovação da origem dos recursos objeto da repatriação. O posicionamento representa uma guinada no entendimento do Fisco. À época das adesões ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), a própria Fazenda publicou um “Perguntas e Respostas” esclarecendo dúvidas a respeito do programa, no qual indicava expressamente que cabia aos contribuintes apenas declarar que a origem dos bens era lícita. Segundo o tutorial, o ônus da prova de eventual falsidade da declaração era da Receita Federal (pergunta nº 40).
A mudança recente veio com a inclusão de duas notas ao “Perguntas e Respostas”, segundo as quais a desobrigação do contribuinte em comprovar a origem do recurso se referia apenas ao momento da adesão. Se, após esse instante, a Receita Federal questionasse a procedência dos bens regularizados, o contribuinte deveria apresentar comprovação da origem dos valores.
No momento de adesão, o cenário jurídico garantia a segurança de que a comprovação da origem dos recursos não seria cobrada
Esse anúncio preocupou o contribuinte que aderiu ao programa em 2016 e 2017 e que desde então acreditava, com razão, estar anistiado dos crimes indicados na Lei de Repatriação (Lei nº 13.254/2016) – já que a lei não exigia comprovação de origem para a adesão.
Lembre-se, ainda, de que a primeira versão do projeto que resultou na Lei nº 13.254/16 (PLS 298/2015) trazia disposição expressa para que os contribuintes se munissem de documentos suficientes para comprovar a origem dos recursos regularizados. No entanto, tal exigência foi retirada do projeto de lei aprovado, pois não fazia qualquer sentido lógico.
De fato, em grande parte das hipóteses dos aderentes ao RERCT, é impossível existir documentos ligando os recursos regularizados à operação que lhes deu origem. Tomemos como exemplo a clássica situação da venda de um imóvel nos idos dos anos 80, quando era normal (não é hora de hipocrisias) que o contribuinte recebesse parte formalmente e parte “por fora”. O que quer, agora, o Fisco? Foto da mala de dinheiro, confissão do comprador, delação do doleiro? Ora, é óbvio que não se tem prova de origem desses recursos. E não é por outra razão que não se tem notícia de exigência parecida nas inúmeras leis de repatriação editadas em inúmeros países, nem mesmo nas recomendações da OCDE sobre a estrutura dessas normas.
Portanto, no momento em que o contribuinte avaliava optar ou não pela adesão ao RERCT, o cenário jurídico garantia a segurança de que a comprovação da origem dos recursos não lhe seria cobrada. Inegável, pois, que essa exigência agora faz parecer que o contribuinte terá caído numa armadilha.
Também há notícias de intenções do novo governo de fazer um cruzamento de dados dos contribuintes que optaram pela repatriação (entre Coaf e Polícia Federal). A medida, se posta em prática, constituiria um ato investigatório de natureza criminal, expressamente proibido pela Lei de Repatriação. A lei concedeu anistia criminal ao contribuinte, estabelecendo que ele não poderá ser investigado só pelo fato de ter aderido ao programa.
Cruzar dados não é uma tarefa trivial à disposição das autoridades públicas. A recente lei de proteção aos dados pessoais incrementou a tutela dessas informações. Cruzar dados para fins investigatórios pressupõe violar o sigilo do contribuinte, o que só é permitido em situações excepcionais, mediante fundadas suspeitas de prática criminosa – o que não é o caso de quem aderiu ao programa.
Como dito, o RERCT estabeleceu que o contribuinte deveria apenas declarar que a origem dos recursos é lícita. Quem declarou, pagou o tributo e a multa é presumido contribuinte de boa-fé. Estando dentro do programa, está também protegido de investigações criminais.
Os 27 mil contribuintes que aderiram confiaram no Estado brasileiro e cumpriram sua parte no acordo, que resultou em R$ 174,5 bilhões regularizados e na vultosa arrecadação de R$ 52,6 bilhões em tributos e multas para o país. Romper o combinado neste momento, além de afrontar expressamente a lei, viola o seu espírito e semeia insegurança jurídica.
A investigação criminal também não poderá ser uma decorrência automática da exclusão do contribuinte do RERCT. A lei foi clara ao estabelecer que, mesmo na hipótese de exclusão, a investigação sobre a origem dos ativos somente poderá ocorrer “se houver evidências documentais não relacionadas à própria declaração do contribuinte”.
Ainda que se trate de pessoa alvo de delação premiada, o ônus da prova continua sendo da Receita. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que delação não é prova nem indício. É apenas “meio” de obtenção de prova, que só tem validade se corroborada por provas. Cabe à Receita buscar provas. Se não as obtiver, deve arquivar o procedimento e manter o contribuinte no programa. Se delação não é prova nem indício, não é suficiente para obrigá-lo a demonstrar nada.
A investigação de crimes em razão da repatriação está condicionada à prévia exclusão do programa pela Receita Federal e, mesmo após tal exclusão, à existência de outras evidências documentais da irregularidade sobre a origem dos recursos que não sejam a própria declaração prestada pelo contribuinte. Assim, é razoável supor que a intenção da Receita venha a ser em breve reavaliada, para que não se rompa o pacto social de anistia.
Rodrigo Falk Fragoso é sócio do Fragoso Advogados e professor da Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Luiz Gustavo Bichara é sócio do Bichara Advogados e procurador tributário do Conselho Federal da OAB.